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No texto anterior, tratei da importância da autonomia para os bebês e crianças. Agora, refletirei sobre como podemos direcionar nossas ações para os problemas/desafios que as crianças enfrentam no cotidiano, a partir da consideração das suas possibilidades de autonomia. Para isso, trago duas situações que observei recentemente.

A primeira foi um vídeo que assisti numa formação. Nele, apareciam trechos da rotina de uma criança, com aproximadamente três anos,  num centro de acolhimento. Na primeira cena, ela estava sentada no chão e brincava com um aviãozinho. Depois, utilizava um jogo de encaixes com pinos de madeira. Mais tarde, no seu lanche,   passava a geleia no pão e se servia de leite, usando uma faca e virando sozinha a jarra na sua caneca. No parque, subia num cilindro de concreto, transportava objetos de diferentes tamanhos, formatos e pesos, cavava com uma pá no tanque de areia, colocava a areia dentro de uma garrafa plástica e, depois, usava um martelo para tentar fixar um prego numa madeira. Fora esta última ação, nenhuma das anteriores chamaria tanta atenção, não fosse pelo fato que sua mão direita tinha apenas parte dos dedos polegar, indicador e médio, e que na mão esquerda ela não tinha os dedos. Algo que só notei após boa parte da filmagem ter transcorrido. Pensei comigo mesma: como não percebi algo tão evidente? Não percebi, pois a criança era capaz de realizar, sozinha, todos os desafios que faziam parte da sua rotina, ou seja, ela desenvolveu recursos para utilizar as suas mãos de forma possível, suficiente e eficiente.

A segunda situação presenciei na piscina do meu condomínio. Estava deitada na espreguiçadeira, quando vi uma criança de aproximadamente uns quatro anos, brincando na piscina. Ela usava uma boia de braço  e apoiava-se num espaguete de isopor, segurado pela mãe. Até então, nada demais, afinal, a segurança na água é essencial! O que passou a chamar a minha atenção era a forma de interação com a filha. A qualquer mínima batida de pernas que realizava, recebia de sua mãe uma felicitação demasiadamente efusiva para ações bastante triviais para uma criança de quatro anos. Na borda da piscina havia muitos brinquedos espalhados: jogos de xícaras, bonequinhos, potes de diferentes cores e tamanhos. Nenhum serviu para alguma brincadeira. Após alguns minutos, a criança quis sair da água. Ao colocá-la de pé na borda, ela esboçou um desconforto com a temperatura do chão. Com rapidez, a mãe jogou água em seus pés, recolheu todos brinquedos, enrolou-a na toalha e a levou no colo até a cadeira.

Longe de mim condenar as ações desta ou de qualquer mãe aos cuidados de seus filhos. A questão não é essa. O que quero trazer a tona é que o excesso de zelo, às vezes, pode dificultar a iniciativa da criança, pois ao suprir qualquer mínimo desconforto e valorizar qualquer ação trivial, passamos uma mensagem contraditória, isto é, dizemos que todos os seus problemas serão imediatamente assumidos pela mãe e que a criança não é capaz de enfrentá-los sozinha. Além disso, qual o objetivo de sempre elogiar o que a criança está fazendo? A criança do centro de acolhimento realizou gestos que demandavam muita habilidade para qualquer criança de sua idade e, em nenhum momento, foi interrompida por um adulto elogiando-a. Nem mesmo quando usou o martelo!

Aliás, pensando em acesso a objetos que podem trazer riscos, sempre me intriguei com a opção dos pais da Bela Adormecida de recolherem todos os fusos de roca para protegerem a sua filha. Provavelmente, se eles tivessem mostrado como ele era, qual sua função e que seria perigoso se ela colocasse o dedo na agulha, as chances dela tocá-lo seriam bem menores. É certo que com isso perderíamos um belo conto de fadas, mas esta seria outra história.

Por Ana Paula Yazbek

Texto originalmente publicado no portal Papo de Mãe.

Martelo e boia: Os desafios que fazem parte da rotina das crianças