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No dia a dia, diversas situações que passamos com as crianças nos escapam, mas  estão fazendo parte do desenvolvimento infantil. Analisando a história abaixo, fica claro como um trabalho pedagógico pode fomentar nelas, de forma decisiva, aspectos como a autonomia, vocabulário, construção de vínculo, pertencimento e identidade 

Neste post vou relatar uma cena que me fez pensar sobre como os princípios e objetivos do trabalho com as crianças pequenas em relação ao desenvolvimento infantil transparecem no dia a dia e, se não tomarmos cuidado, acabamos não conseguindo enxergar o que há por trás de ações que podem parecer triviais.

Num final de período, eu estava me deslocando do parque a caminho de meu escritório, quando um menino de 3 anos e sete meses me parou para mostrar uma mochila que ele supunha que um colega tivesse esquecido:

– Ana espere! Olha, aqui está a mochila do meu amigo, eu acho que ele já foi embora. Aqui também tá a bolsa da mãe dele!

 

Como era um lugar que normalmente não guardamos as mochilas, eu olhei ao redor e não vi nem a criança, nem a mãe, e achei que, na correria, a mãe tinha esquecido a mochila com a bolsa. Então, eu peguei-as, disse-lhe que ia tentar ver se ainda estavam na porta ou iria telefonar para casa deles. Mas antes de sair, o menino me interrompeu e me instruiu sobre o que fazer:

— Não, Ana! Precisa dizer que tava no lugar errado e aí você fala com ela e depois você diz, “tchau e de nada”!

 

Qual leitura eu faço desta cena?

As ações acima denotam que ele é uma criança que conhece o funcionamento do Espaço. Sabe quem são as pessoas que chegam, quem vai embora, conhece o que pertence às crianças com as quais ele convive e entende alguns códigos – que uma mochila acompanhada de uma bolsa indica a presença de uma mãe e, ao notar que estes objetos estavam num local pouco usual de guarda, supôs que alguma coisa poderia estar acontecendo e que os donos precisariam ser informados. Ao me ver e conversar comigo, mostrou saber que eu seria a pessoa que poderia dar um destino para estes objetos, afinal, ele me vê circulando e conversando com as famílias (inclusive com a sua mãe), sabe que eu sou uma pessoa que me relaciono tanto com as crianças como com as famílias. Mostrou também uma preocupação com a boa educação que era informar a pessoa que as bolsas estavam perdidas e que existe uma norma relacionada ao agradecimento quando a gente conversa com alguém e dizemos “de nada”. Por fim, mostrou que ele se importa com algo que pertence ao outro.

Isto me faz pensar o quanto que num cotidiano que é significativo para as crianças este tipo de coisa acontece. Se ele estivesse restrito ao espaço de uma sala de aula, tendo que repetir jargões, palavras prontas, completar o discurso que a educadora sugere; se houvesse restrição para a circulação e presença de pais e mães; se os pertences das crianças fossem iguais, seria muito difícil que uma situação como esta acontecesse.

Outra reflexão que surge é que este tipo de interação muitas vezes é pouco notada mas, ao analisá-la, percebemos todo o trabalho sutil que acontece ao longo do dia a dia, que ilustra alguns pontos bastante significativos para a maior parte dos projetos pedagógicos, como construção de vínculo, autonomia, pertencimento, identidade, vocabulário, e muito mais, pois (ainda bem) tem muitas coisas nos escapam,  principalmente às que estão no âmbito do imaginário infantil. Mas isto será assunto para outro post.

Por Ana Paula Yazbek

* Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e​ é sócia-diretora do Espaço Educação Ekoa, berçário e educação infantil que atende crianças de 0 a 4 anos; trabalha com formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos sobre as crianças pequenas.