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Há muito tempo, num reino muito, muito distante do universo, chamado planeta terra, os bebês, ao nascerem, eram presenteados por diversos dons, todos trazidos por belas fadas que desciam das estrelas mais especiais e brilhantes do céu. 

A fada da visão, ao entregar o seu dom a um recém nascido, falava: 

– Este dom permitirá que se encante com as cores e as formas presentes em todo mundo. Será capaz de enxergar e interagir com as mais diversas coisas, das mais próximas, até as mais distantes e, também, saberá usar este dom para ver a luz que há através dos olhos das outras pessoas!

 

A fada da audição, vinha em seguida e dizia:

– Com meu dom, conseguirá perceber uma infinidade de sons, desde os mais sutis, até os mais intensos. Conseguirá não apenas percebê-los, mas também será capaz de criar e interpretar os seus significados.

 

A terceira a falar era a fada do tato: 

– Com meu dom, conseguirá se afastar de vários perigos do mundo. Irá sé afastar do fogo, antes que se queime, dos espinhos, antes que o furem. Mas, também com este dom será capaz de se aproximar e usufruir de vários prazeres do seu e de outros corpos.

 

As fadas do paladar e do olfato, vinham juntas:

 – Nós te presenteamos com os dons do gosto e do cheiro que permitirão que desfrute do que há de melhor do aroma e do sabor da natureza.

 

A última fada a falar era a mais aguardada, pois era a mais especial de todas: era a fada da propriocepção. 

– O dom que recebe permitirá que perceba o seu próprio corpo em movimento. Com ele, será capaz de perceber em movimento as  posições do seu corpo, sentir a sua velocidade, realizar gestos que permitirão sobreviver a este mundo, de tal forma que, ainda que perca todos os dons anteriores, continuará capaz de sentir-se vivo. 

 

Este ritual perdurou por muitos anos. Os bebês cresciam, viravam crianças, adultos, envelheciam e, após uma vida plena, morriam e seguiam ao infinito para se juntar a outras estrelas. 

Certo dia, uma fada má apareceu neste reino e, com muita inveja de tanta harmonia e perfeição, resolveu rogar incuráveis pragas:

 

Ao dom dado pela fada da visão, disse:

– Aos poucos trocará a luz dos olhos pela luz de um visor, de uma tela. No início, ela servirá para distraí-lo, enquanto os adultos se ocupam de algo. Depois ela ocupará não apenas o seu lazer, mas o seu estudo, o seu trabalho, as suas reuniões e encontros de amigos, dando a impressão de que pertence a um grupo. Até mesmo na presença de seus amigos e de sua família ficará mais preso aos visores e telas, do que à luz dos seus olhos.    

 

Ao dom dado pela fada dos sons, rogou:

–  Com o tempo, trocará os sons naturais por ruídos insuportáveis. No início, irão poupá-lo. Mais adiante, como forma de prender a sua atenção, começarão a bombardeá-lo com sons estridentes. Vai se acostumar. Vai morar em lugares muito ruidosos e vai anestesiar esta percepção.

 

Aos dons dados pelas fadas do paladar e olfato, vociferou:

– A estes dons, desde o nascimento, terá muita dificuldade. O seu leite não será mais suficiente, a sua comida não será mais saboreada e os aromas dos ambientes serão pouco percebidos.  

 

Finalmente, ao dom dado pela fada da propriocepção:

– A este dom rogo a praga mais forte. Após alguns anos, deixará de ter contato com o seu corpo, achando-o inferior. Não perceberá que a sua mente é o seu próprio corpo. Ficará parado durante anos. Com isto, sentirá muita dor, desconforto, cansaço, desânimo e doença.  Permanecerá tanto tempo sem se mover, que será incapaz de se reconhecer e  perceber seus gestos.

 

Assim que a fada má partiu, as fadas corporais começaram a buscar alguma solução para o problema, pois a praga era incurável. O que poderiam fazer?

Decidiram amenizar os males e foram buscar algumas estrelas especiais, aquelas que teriam como missão ajudar as pessoas deste reino a enfrentarem estas terríveis maldições. Assim, chegaram os artistas, os músicos, os cozinheiros, os enfermeiros, os médicos, os massagistas, os fisioterapeutas, os psicólogos, os nutricionistas, os terapeutas corporais, os dançarinos, os educadores, os cientistas…  

Baseado na história da Bela Adormecida, escrevi este texto há dez anos, durante as ações de formação de professores. Na ocasião, queria chamar a atenção para a importância dos sentidos do corpo para uma vida plena e saudável. Nunca imaginaria reescrevê-la e perceber que, além de todas as profissões citadas, há centenas de profissões como porteiros, caminhoneiros, motoristas, caixas de supermercados, empacotadores, motoqueiros, garis, que neste momento expõem seus corpos à doença, para a própria sobrevivência e a dos demais.  Estas pessoas estão mais próximas ao fuso da roca, que a jovem princesa Bela Adormecida espetou seu dedo e caiu em um sono profundo de cem anos, segundo o conto dos Irmãos Grimm. Elas merecem nosso mais profundo respeito e admiração. 

O cenário da pandemia também me fez lembrar da fada má e dos possíveis efeitos que as crianças estão enfrentando nos dias atuais. Como explicar para uma criança que neste momento ela não pode abraçar seus avós, se atirar no colo da professora, encontrar e brincar com os amigos? Como equilibrar o tempo de televisão, de computador e de celular com o tempo de interação “olho no olho”? Como lidar com a ausência do barulho da escola, do recreio, dos gritos no parque ou na praia? Para aquelas que moram em cidades grandes, o ar está menos poluído. Mas, do que adianta, se elas não estão sentindo o aroma da natureza? Os sentidos do corpo estão limitados. O corpo do outro é visto com desconfiança e medo. As crianças podem transmitir algo que afeta o corpo alheio. O corpo não pode se agrupar. O corpo pode adoecer. 

As perguntas e os temores que nos assombram certamente deixarão cicatrizes. Uma cicatriz é um tecido novo que se forma durante o processo de cura de uma ferida, quando não é mais possível a regeneração completa da pele. As cicatrizes fazem parte do corpo e da história vivida por este corpo. 

O problema não são as cicatrizes, mas as feridas abertas. Elas ficam expostas, permanecem abertas se não forem tratadas corretamente. 

Desta forma, precisamos olhar com muita atenção para as crianças, dar contorno e apoio para que, ao saírem deste período de confinamento, possam usufruir de todos os sentidos corporais, permaneçam ao lado de fora, brinquem com os amigos, ouçam histórias em rodas de leitura, passeiem na natureza, se alimentem juntas, sem deixar que a fada má as impeça de viver plenamente esta experiência maravilhosa que é viver neste reino tão distante do Universo, chamado Planeta Terra.      

Abaixo segue o link com a LIVE que deu origem a este texto – https://youtu.be/Zlva2FK_GjA

Por Marcos Santos Mourão