Tive a felicidade de nunca ter estudado em escolas tradicionais e ser bombardeada por tarefas mecânicas destituídas de sentido e significado, mas como não sou tão novinha (nasci em 1970), não escapei dos exercícios de psicomotricidade, nem das famílias silábicas.
Levei muito cachorrinho à sua casinha, tendo que seguir um único caminho. Liguei maçã com banana e menino com menina na mesma lição, embora achasse mais interessante levar a maçã para a menina e a banana para o menino, mas minha professora dizia que “era para unir os semelhantes”, então sem saber direito o que isso queria dizer, ligava fruta com fruta e deixava as crianças com fome!
Muitas vezes, a mão doía de ter que ligar tanta coisa, fazer tantos traçados sinuosos, mas havia uma grande expectativa, pois logo mais eu e meus amigos iríamos conhecer as letras e seríamos apresentados a umas famílias muito importantes.
Eu sentia uma vontade enorme de ler e escrever, era a irmã mais nova e queria muito poder partilhar daquele universo que só os maiores conheciam.
Quando fiz seis anos, ganhei um estojo de madeira, um conjunto de lápis de cor, apontador, borracha verde e dois lápis grafites. Puxa, como era legal apontar os lápis e que arrepio eu sentia toda vez que abria a tampa do estojo e ouvia o barulhinho dela percorrendo o vão. Lembro que a minha sempre emperrava, não sei porquê.
Quando as aulas começaram, a sala era diferente, ao invés de mesas coletivas, tínhamos mesinhas individuais, com um espaço embaixo para colocarmos os cadernos e estojos. A cadeira era alta e os pés ficavam balançando no ar, mas o que mais me mobilizava era o frio na barriga de saber que “agora sim eu poderia aprender a ler e escrever”.
As lições começaram e, logo no primeiro dia, fomos apresentados à família do B e recitávamos, B com A dá BA, B com E dá BE e assim sucessivamente. Desenhamos balas em nossos cadernos e copiamos muitas vezes a palavra bala. Confesso que eu achava estranho ter outra família no meu caderno, pois se eu estava aprendendo a do B, por que aparecia aquela intrusa da família do L? Ao mesmo tempo, achava que minha professora sabia o que estava fazendo e que o mais importante era conhecer a primeira família das palavras, as outras a gente ia aprendendo depois.
Depois de muitas lições com a família do B, a professora nos disse que iriamos conhecer outra família. Eu estava certa que seria a do C, mas estava enganada. Ela disse que esta família era muito difícil e por isso iriamos aprender primeiro as mais fáceis: do D, do F, do J… e que as mais difíceis viriam depois. Lembro que a professora falou que a família do C era um pouco diferente, que os sons do C com E e do C com I, não formavam o som do QUE e QUI, como imaginávamos. Puxa! Como fiquei esperando chegar o dia de entender isso!
Quando finalmente este dia chegou, tivemos primeiro a aula de somente alguns “membros” desta família: o CA, o CO e o CU.
Quantas casas eu escrevi e desenhei. Tudo ia se encaixando, era muito simples, a professora ia nos ensinando e a gente aprendendo. Até que ela pediu uma lição de casa: tínhamos que desenhar palavras que começassem com CA, CO e CU.
Oba! Como as lições eram fáceis. Lembro que sentei na minha escrivaninha, deslizei a tampa emperrada do estojo de madeira, apontei o lápis que só quebrava a ponta de tanto ter caído no chão e comecei a desenhar.
Fiz uma CASA. Achava no fundo que devia fazer outra coisa, porque já tinha feito tanta casa na escola, mas sabia que a professora ia aceitar. Acho também que já tinha aprendido que na escola o que valia era a resposta certa, independente da obviedade.
Desenhei uma CORUJA, minha mãe colecionava corujas e achei que ninguém na minha sala ia desenhar algo tão original. Acho que também tinha aprendido que fazer coisas diferentes era importante para ter destaque.
Então chegou a vez de desenhar algo que começasse com a sílaba CU. Opa! Como assim? Não lembrava de nada que começasse com esta sílaba que não fosse o próprio! Ai, socorro, não podia ser, a professora devia ter se enganado, ela não podia ter pedido para a gente fazer algo tão obsceno (eu não conhecia esta palavra, mas já sabia seu significado). Bom, como eu estudava à tarde, deixei para terminar a lição no dia seguinte. Fui dormir pensando em palavras que começavam com CU e não vinha nada, nada diferente, quem sabe durante o sonho a palavra aparecesse!
Acordei, tomei café, abri o desgraçado do estojo emperrado, equilibrei a ponta quebrada do lápis para não ter que apontá-lo, olhei para um lado e para o outro, respirei fundo e com tristeza desenhei uma bunda, fiz uma seta e escrevi CU. Afinal era isso que a professora tinha pedido.
Cheguei na escola com vergonha, mas pelo menos tinha feito a lição. Antes da aula começar, perguntei para minha melhor amiga, a Roberta, o que ela tinha feito e ela, toda feliz, me mostrou o desenho mais do que caprichado de um lindo relógio de parede com um CUCO saindo de dentro!
Fiquei roxa de raiva, inveja e de vergonha, tinha passado um tempão quebrando minha cabeça e não sai do lugar. Mesmo assim, entreguei minha porca lição para a professora. Não me lembro se levei bronca ou se ela ficou com pena de mim e não falou nada. Só sei que percebi que nem sempre o esforço é suficiente para termos sucesso, mas isto já é uma outra história.
Por Ana Paula Yazbek